terça-feira, 24 de maio de 2011

Stora, ele puxou-me o sutiã!
Estávamos em 1978, numa escola com cerca de três mil alunos, a abarrotar pelas costuras. Uma cidade bonita, de colinas íngremes, muita gente nova pelos cafés, um rio domado aos pés, uma torre lá no alto e ainda eléctricos amarelos nas ruas.
Júlia Tavares tinha sido colocada numa das escolas da cidade. Começara o mês de Outubro, o ar era suave e doce, só a incomodou a ladeira e as dezenas de degraus que teve de subir até chegar ao edifício principal. Muitos alunos, sentados nas escadas, ocupavam o tempo dos furos, conversando, fumando cigarros, numa atitude tranquila, de ociosidade passiva.
Júlia Tavares tinha vinte anos, feitos no mês anterior. Estudara naquele liceu, conhecia bem a casa, o jardim interior, as salas antigas. Muitos dos seus professores ainda lá ensinavam. Sempre gostou do liceu, da turma de vinte e três rapazes e duas raparigas, da professora loira, tímida e gordinha que dava uma disciplina chamada Introdução à Política. Do professor de Geografia recordava inúmeras histórias hilariantes.
Entrou no átrio, reconheceu o cheiro a humidade e mofo, dirigiu-se para o gabinete do Conselho Directivo. O presidente, um homem de barba grisalha e ar demasiado severo, entregou-lhe um horário, incompleto, comunicou-lhe que deveria começar no dia seguinte e que as turmas de sétimo ano eram constituídas por trinta alunos. “Não lhes dê confiança, mantenha-se séria. Ainda não há os manuais adoptados à venda, faça exercícios no quadro e mantenha-os ocupados como puder”.
Passou na sala de professores, vários olhares desconfiados caíram sobre ela, examinaram-na de alto a baixo e os bons- dias pronunciados foram ditos por favor, pelo menos assim lhe pareceu. Sentou-se a um canto, num sofá avermelhado, antigo e gasto. Ficou quietinha a observar. Os professores tratavam-se entre si por stôr para aqui, stôra para ali. No geral, vestiam roupas severas e puídas, alguns usavam bata branca, havia duas mulheres e um homem jovens, que pareciam desencaixados, naquele ambiente de gente mais velha. Entrou o antigo professor de Geografia, o stôr Firmino. Lembrou-se das histórias estúpidas que contava: - A minha mulher é muito feia – dizia. - Mas isso tem mais vantagens que inconvenientes, à noite apago a luz, e não a vejo e, de dia, quando andamos na rua, ninguém olha para ela. Quando o stôr Firmino passava pela Júlia e pela Teresa Rita, se estava a chover, dizia sempre: - Meninas fechem o chapéu que a chuva faz bem às flores. A Teresa Rita era a melhor amiga e colega de turma da Júlia.
Ficou cerca de um quarto de hora dentro daquela sala, ninguém se dirigiu a ela, também não abordou ninguém. Saiu, soube-lhe bem o ar fresco da manhã. Dirigiu-se para a casa onde tinha alugado um pequeno quarto.
A casa era antiga, cor-de-rosa, com um jardim de buxo à frente, completamente desmazelado, havia arbustos e ervas que cresciam selvaticamente, competindo entre si. A parte da frente da casa era virada a Norte, húmida e sombria. O seu quarto dava para o jardim, nunca apanhava sol, as paredes eram amareladas e havia bolor e grelado nos cantos altos. A mobília resumia-se a uma cama estreita, um armário carunchoso e uma secretária pequena. A casa-de-banho era enorme desaconchegada e situava-se no primeiro andar. A dona da casa era uma viúva alentejana, com quatro filhos a cargo, que se sustentava com o dinheiro dos quartos, que arrendava a estudantes e professores jovens.
Sentou-me à secretária, tirou duas esferográficas Bic, uns cadernos e uns livros antigos, que tinha trazido de casa e tentou preparar alguma coisa para as aulas do dia seguinte; duas turmas de sétimo ano e uma turma do 11.º ano. Por volta das oito horas, saiu, entrou num café ali perto, comeu uma sandes de queijo e bebeu uma água. Regressou ao quarto, leu mais umas páginas de um livro de Aquilino que a acompanhava já há alguns dias. Finalmente adormeceu, acordou várias vezes durante a noite. A cama era péssima, sentia-se ansiosa. Afinal, no dia seguinte, seria o seu primeiro dia como professora.
Ninguém lhe tinha mostrado a escola, felizmente que a conhecia bem. Encontrou as salas com facilidade. Os miúdos entraram em correria, dando encontrões uns aos outros, gritando desalmadamente. Lá se sentaram. Olhou para eles de cima do estrado, sentiu o estômago apertadinho, a voz saiu a tremer. Começaram as apresentações. O dia não correu nem bem nem mal. Era mais ou menos o que esperava.
As turmas eram enormes, os alunos de 7.º ano irrequietos, barulhentos. Sem manual, só com um quadro de giz, a tarefa era difícil. No entanto, os miúdos acabavam por acalmar e copiavam os exercícios do quadro. Fazia-se silêncio, quando Júlia contava uma história. Os jovens do 11.º ano, tinham quase a sua idade, achavam piada à professora jovem, nem parecia professora, era quase uma colega.
Os dias corriam com frustrações e alegrias, umas aulas corriam melhor, outras nem por isso. Os colegas pouco ajudavam, materiais não havia. A maior parte dos colegas olhavam-na com desconfiança. Soube mais tarde que lhe chamavam a existencialista.
Um Sábado, Júlia foi para a escola dar as quatro aulas daquela manhã. Estava cansada, enervada, o final do segundo período aproximava. A aula do 7.º F estava a decorrer normalmente, quando se ouve um grito na sala, “Stôra, ele puxou-me o sutiã”. Irritada, perguntou: - Quem é que puxou o sutiã a quem? A Mariana disse baixinho: - Stôra, o Victor não pára de me puxar o sutiã e aleija-me as costas. Júlia achou que tinha de tomar uma decisão, era preciso castigar o Victor.
O Victor era um rapaz mais velho, muito alto e magro. Júlia não sabia nada da sua família ou do seu percurso de vida, o que sabia era que Victor já tinha duas faltas disciplinares, duas faltas a vermelho, e, naquele tempo, com três faltas a vermelho era-se expulso da escola.
A turma estava suspensa da decisão da professora, que tinha gritado mais alto do que era costume. Se expulsasse o Victor da sala, este não poderia voltar à escola. O cérebro de Júlia trabalhava sob pressão, todos a olhar para ela, todos à espera da sua decisão. Naquele tempo, até o uso da palavra sutiã era para fazer à boca pequena, não era palavra que se dissesse assim, em voz alta, numa sala de aula. Um rapaz a puxar o sutiã a uma rapariga era um comportamento que tinha de ser castigado. Castigar o Victor… sutiã da rapariga… Victor não é mau rapaz… Victor não pode ser expulso… turma à espera…: o cérebro a tentar ordenar todas as emoções e a tensão do momento.
Em cima do estrado, Júlia pronunciou a sentença, qual mau juiz, num tribunal de terceira categoria. – Victor, ou ficas com falta a vermelho ou vens aqui, à frente, e levas uma estalada. Silêncio na sala, ouvia-se a respiração dos miúdos. Júlia, tinha a caneta vermelha na mão, à espera que o Victor se levantasse e saísse da sala. O Victor levantou-se, quase solene e disse: - Prefiro a estalada. O coração de Júlia disparou como um cavalo de corrida, sentiu-se um pouco tonta, nunca tinha batido num aluno, nem sequer no calor das confusões. O Victor avançava para a professora, o passo era firme e decidido, não era um miúdo, era um adolescente alto, esguio e corajoso. Chegou junto ao estrado, Júlia tinha vontade de fugir, achou que se desse a estalada ia receber outra de volta… O que fazer… A mão de Júlia avançou sozinha e pousou com força na face do Victor. Tinham-se ouvido os passos do Victor do seu lugar até ao estrado, o barulho de um grupo que passava no corredor, silêncio e depois, Pahhh. O burburinho dos alunos acordou Júlia daquela espécie de transe em que se encontrara por breves instantes. O Victor já estava no seu lugar. A frase batida saiu sem que desse conta: - Vamos continuar a resolver os exercícios que estão no quadro.
O Victor passou de ano, não houve mais problemas de sutiãs ou de outra qualquer espécie. O olhar que dirigia a Júlia era uma mistura de agradecimento, respeito e rancor. Júlia mal se atrevia a olhar para ele, certa de que aquela decisão tinha sido terrível e desajeitada e que jamais se repetiria.
Maria Luísa Figueiredo
Dezembro, 2010