domingo, 8 de novembro de 2009

Ricardo Reis - Poema

Cada um Cumpre o Destino que lhe Cumpre

Cada um cumpre o destino que lhe cumpre,
E deseja o destino que deseja;
Nem cumpre o que deseja,
Nem deseja o que cumpre.
Como as pedras na orla dos canteiros
O Fado nos dispõe, e ali ficamos;
Que a Sorte nos fez postos
Onde houvemos de sê-lo.
Não tenhamos melhor conhecimento
Do que nos coube que de que nos coube.
Cumpramos o que somos.
Nada mais nos é dado.

Ricardo Reis, in "Odes"
Heterónimo de Fernando Pessoa

Alberto Caeiro


Estou Lúcido como se Nunca Tivesse Pensado

A noite desce, o calor soçobra um pouco,
Estou lúcido como se nunca tivesse pensado
E tivesse raiz, ligação directa com a terra
Não esta espécie de ligação de sentido secundário observado à noite.
À noite quando me separo das cousas,
E m'aproximo das estrelas ou constelações distantes —
Erro: porque o distante não é o próximo,
E aproximá-lo é enganar-me.

Alberto Caeiro, in "Poemas Inconjuntos"
Heterónimo de Fernando Pessoa

Alberto Caeiro - Síntese

Alberto Caeiro vê as coisas apenas com os olhos e não com a mente. Quando olha para uma flor, não permite que isso provoque quaisquer pensamentos. A única coisa que uma pedra lhe diz é que nada tem para lhe dizer. Esta maneira de olhar para uma pedra pode ser definida como a maneira totalmente não-poética de a olhar. O facto estupendo acerca de Caeiro é que produz poesia a partir deste sentimento, ou, antes ausência de sentimento.
A poesia de Caeiro é sensacionista. A sua base é a substituição do pensamento pela sensação, não só como base da inspiração mas também como meio da expressão.
Caeiro é o sensacionista puro e absoluto que se prostra ante as sensações e nada mais admite. Caeiro não tem ética, a não ser a simplicidade. Caeiro é pagão. Aliás, diz Álvaro de Campos, era o paganismo.
Na poesia de Caeiro verifica-se que:
vive de impressões, fundamentalmente visuais;
• identifica-se com a natureza e vive de acordo com as suas leis;
• é instintivo e espontâneo;
• prefere a objectividade;
• abre-se para o mundo exterior;
• recusa a introspecção e a subjectividade;
• repudia a expressão sentimental;
• vive no presente;
• diz que "pensar é estar doente dos olhos";
• usa uma linguagem simples, familiar e denotativa;
• cultiva o verso livre;
• os recursos estilísticos que usa são a comparação, a metáfora e a personificação;
• a sua poesia é bucólica;
• recusa a metafísica e afirma não ter filosofia.

Caeiro por Eduardo Lourenço

Caeiro é a nossa reconciliação com o universo, o regresso à idade idílica da harmonia com a Natureza que, aliás, não é idílica. Na verdade, Caeiro é o mero Sonho desse sonho. Nós não podemos recuperar a alma grega que o cristianismo corroeu sem remédio. Não podemos ser pagãos por inocência. Caeiro não é uma saída verdadeira do labirinto do Tempo, o nada vivo em que estamos como Pessoa o visiona. É uma porta pintada para nos fazer crer que tocamos com mãos de vida e não de sombra o autêntico real.
Eduardo Lourenço, Fernando, Rei da Nossa Baviera

Alberto Caeiro

Caeiro quer ajudar o espírito doente dos homens (adoecido por séculos de cristianismo) a amar a realidade visível, por isso a “saber ver sem estar a pensar”, sem tentar encontrar um sentido às coisas” que as remeta para um lado de dentro que a natureza não tem – esse Além que o cristianismo ensinou a venerar. Caeiro ensina a “ver, apenas a ver” o que a claridade do sol e a curva do horizonte permitem. Por isso a noite é má conselheira: sem o apoio no concreto, os olhos começam a delirar, a ver o que não está ali, a pensar no que as coisas significam. Mas as coisas não têm significado, têm existência”. Caeiro ensina a criar a raiz, e no Perto, a enjeitar o ilimitado, o infinito, o mistério: por isso nunca fala do mar que foi banido do seu universo.
Teresa Rita Lopes, Pessoa por Conhecer, Ed. Estampa

sexta-feira, 6 de novembro de 2009

Ricardo Reis

Ricardo Reis, heterónimo de Fernando Pessoa, é o poeta clássico, da serenidade epicurista, que aceita, com calma lucidez, a relatividade e a fugacidade de todas as coisas. “Vem sentar-te comigo Lídia, à beira do rio”, “Prefiro rosas, meu amor, à pátria” ou “Segue o teu destino” são poemas que nos mostram que este discípulo de Caeiro aceita a antiga crença nos deuses, enquanto disciplinadora das nossas emoções e sentimentos, mas defende, sobretudo, a busca de uma felicidade relativa alcançada pela indiferença à perturbação.
A filosofia de Ricardo Reis é a de um epicurismo triste, pois defende o prazer do momento, o “carpe diem”, como caminho da felicidade, mas sem ceder aos impulsos dos instintos. Apesar deste prazer que procura e da felicidade que deseja alcançar, considera que nunca se consegue a verdadeira calma e tranquilidade – ataraxia.
Ricardo Reis propõe, pois, uma filosofia moral de acordo com os princípios do epicurismo e uma filosofia estóica:
- “Carpe diem” (aproveitai o dia), ou seja, aproveitai a vida em cada dia, como caminho da felicidade;
- Buscar a felicidade com tranquilidade (ataraxia);
- Não ceder aos impulsos dos instintos (estoicismo);
- Procurar a calma, ou pelo menos, a sua ilusão;
- Seguir o ideal ético da apatia que permite a ausência da paixão e a liberdade (sobre esta apenas pesa o Fado).
Ricardo Reis, que adquiriu a lição do paganismo espontâneo de Caeiro, cultiva um neoclassicismo neopagão (crê nos deuses e nas presenças quase divinas que habitam todas as coisas), recorrendo à mitologia greco-latina, e considera a brevidade, a fugacidade e a transitoriedade da vida, pois sabe que o tempo passa e tudo é efémero. Daí fazer a apologia da indiferença solene diante o poder dos deuses e do destino inelutável. Considera que a verdadeira sabedoria de vida é viver de forma equilibrada e serena, “sem desassossegos grandes”.
A precisão verbal e o recurso à mitologia, associados aos princípios da moral e da estética epicuristas e estóicas ou à tranquila resignação ao destino, são marcas do classicismo erudito de Reis. Poeta clássico da serenidade, Ricardo Reis privilegia a ode, o epigrama e a elegia. A frase concisa e a sintaxe clássica latina, frequentemente com a inversão da ordem lógica (hipérbatos), favorecem o ritmo das suas ideias lúcidas e disciplinadas.

segunda-feira, 2 de novembro de 2009

A Milton de Aguiar A gripe

Curtes aí no leito a mais aborrecida
Doença que há na vida:
A gripe maçadora:
A penca a pingar, dorida, inflamada;
Rubra a garganta, a cabeça pesada,
Espilros e tosse esfaceladora.

Deves sofrer porém tudo isso alegremente,
Seres feliz na dor.
Porque tu, Milton, és incontestavelmente,
No meio do defluxo, a vítima do amor!

Do amor, da arte divina,
Da arte suprema e bela
Que nada pode igualar...
És a vítima da TINA,
Somente por causa dela
Estás aí a espilrar!...

Não deves pois sofrer, gozar deves até.
Não se sofre por uma mulher linda,
Assim como essa é.
A dor que ela nos causa, uma ventura infinda
À nossa alma dá:
É um sofrer delicioso,
É um sofrer voluptuoso
Como no mundo outro não há!...

Não te lamento, invejo-te - acredita -,
Não vou saber de ti pra não te despertar
Do sonho em que tu vês essa mulher bendita
Que te fez constipar.

Sem nada mais dizer, desculpa se te maço
Com esta versalhada.
Adeus até breve. Isso não é nada.
Aceita um grande abraço.

Mário de Sá-Carneiro