domingo, 18 de outubro de 2009

Características da poesia de Pessoa ortónimo


Uma das características de Pessoa ortónimo é a dor de pensar que o persegue desde sempre e que manifesta em vários poemas. Como tal são frequentes as tensões ou dicotomias que espelham a sua complexidade interior.
Quanto à dicotomia sinceridade/fingimento, o poeta questiona-se sobre a sinceridade poética e conclui que «fingir é conhecer-se», daí a despersonalização do poeta fingidor que fala e se identifica com a própria criação poética, como impõe o modernismo. Lugares de destaque ocupam os poemas “Isto” e “Autopsicografia” (onde teoriza a criação artística), em que se definem claramente os lugares da inteligência e do coração (as sensações), na criação artística. É assim que este poeta, possuidor de uma grande capacidade de despersonalização (sem todavia deixar de ser um), procura, através da fragmentação do eu (“Continuamente me estranho”, “Não sei quantas almas tenho”), atingir a finalidade da arte, servindo-se da intelectualização do sentimento que fundamenta o poeta fingidor.
O poeta debate-se frequentemente com as dialécticas sentir/pensar e consciência/inconsciência, tentando encontrar um ponto de equilíbrio, o que não consegue. Em “Ela canta pobre ceifeira”, o poeta vive intensamente estas dicotomias: deseja ser a ceifeira que canta inconscientemente, («Ter a tua alegre inconsciência»), e simultaneamente («ter a consciência disso»). Enquanto ela se julga feliz por apenas sentir, o sujeito poético está infeliz porque pensa, racionaliza em excesso. Na mesma linha, cita-se o poema “Gato que brincas na rua”, no qual o sujeito poético reforça a ideia da felicidade de não pensar, («És feliz porque és assim/Que tens instintos gerais/E sentes só o que sentes»).
Em “Leve, breve, suave”, Pessoa manifesta o seu desalento, a sua frustração quando o “eu” consciente do poeta intervém (Escuto, e passou…/Parece que só porque escutei/ Que parou.”). A frustração é resultante de uma incapacidade de atingir plenamente a satisfação, a felicidade.
A luta incessante entre as várias dialécticas origina a dor de pensar e a angústia existencial que bem caracterizam este poeta, e se verificam no poema “Tudo o que faço ou medito”.
Pessoa ortónimo é o poeta da desilusão, tem uma visão negativa do mundo e da vida, como o manifesta no poema “Abdicação”, onde se entrega à «noite eterna” (morte) como se fosse a sua própria mãe.
Outra temática abordada pelo poeta é a desagregação do tempo. Para o poeta, o tempo é um factor de desagregação porque tudo é breve, efémero. Esta fugacidade da vida fá-lo desejar ser criança de novo, visto que a infância lhe surge como o único momento possível de paz e felicidade, como documentam os poemas “Quando era criança”e “Quando as crianças brincam”.
Coexistem duas vertentes na produção poética de Pessoa ortónimo: uma de carácter tradicionalista e outra de carácter modernista. A primeira oferece poemas de métrica curta, manifestando preferência pela quadra e a quintilha. A segunda oferece poemas que iniciam o processo de ruptura com esta corrente.
in Português B, Maria José Peixoto e Célia Sousa, Asa, 2001 (adaptado)

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